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No último post sobre a  Espanha,  que falamos de Ronda e Tarifa, contamos como foi chegar até aqui. Apenas uma hora depois de sair da terra das castanholas, passar por momentos bem tensos e cruzar o Estreito de Gibraltar, estávamos pisando no Marrocos, na cidade portuária de Tanger. Nossa primeira impressão Marroquina não era de um lugar tido como turístico, mas sim o ponto de passagem para quem muda de continente, que cruza da Europa para a África.

Caminhamos mais ou menos uma hora até chegar no nosso Airbnb e  no caminho aproveitamos para trocar dinheiro, olhar tudo atentamente, comer,  provar o primeiro chá de menta marroquino e isso gerava  um  misto de ansiedade, curiosidade  e euforia, a  sensação era de começar um livro novo, daqueles que nas primeiras páginas você já nota que vai gostar.

Quando sentamos na cafeteria, de cara notamos um costume bem diferente; os homens eram atendidos e servidos primeiro, poucas mulheres estavam no lugar, e as que estavam,  assim como eu,  eram estrangeiras. Fomos muito bem atendidos e nossos olhos estavam atentos a todos os movimentos,  era um mundo cheio de novidades.

Depois de instalados, fomos buscar informações para chegar em CHEFCHAOUÉN, a cidade azul, que era o próximo destino, nosso roteiro era uma volta pelo país, com chegada e partida por Tanger, porque voltaríamos para a Espanha, e começar por ali parecia uma  boa escolha, e assim entramos gradativamente no Marrocos, já que a pequena cidade azul é considerada a mais tranquilas das  cidades turística do país. E realmente foi o que vimos, depois de duas horas por uma estrada bem tranquila, no carro que  contratamos numa praça de Tanger onde muita gente oferece este  serviço, o simpático marroquino nos deixou numa esquina da Medina Azul de Chefchaouén.

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Em todos todos os posts do Marrocos vamos citar este lugar, a Medina, que significa a cidade antiga,  toda cidade tem sua Medina e toda Medina, tem sua praça ou via  principal, que daí saem suas ruas, de onde aparecem   muitos becos, travessas e vielas, tudo isso cercado por muralhas, que um dia serviram para proteção destas localidades, mas que hoje em dia,  por si só,   muitas se tornaram atração turística. E é dentro da Medina que tudo acontece, mercados de todos os tipos, muita gente caminhando, vendedores de tudo que se imagina, muita comida, bicicleta, burro, mula, carrinho de mão… e gatos, sempre cheias de  gatos. Dependendo do tamanho da medina existem vários bairros dentro dela, algumas chegam a ter milhares de ruas, se localizar ali é um desafio e mais para frente vocês saberão o quanto eles aprenderam usar isso a favor, deles é claro.

A medina de Chefchaouen não é das maiores, mas com certeza que é uma das mais  encantadoras, um paraíso para fotógrafos e  turistas. Existe muita controvérsia a respeito do motivo da cidade ser azul, a mais aceita é que um dia essa medina foi toda branca e  que durante a Inquisiçao Espanhola ,  judeus migraram   para lá e como costume judaico  pintaram  as casas de azul, outra teoria é  que a região era infestada de mosquitos e alguém espalhou  a idéia que a cor afastava os insetos , dizem também que o azul mantém as casas mais frescas durante a época de muito calor, nenhuma teoria é comprovada, mas o certo que  a pequena e tranquila cidade se tornou  a queridinha do Marrocos.

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Linda , encantadora, um lugar com tantos detalhes que era impossível não passar horas caminhando, mas estávamos com o tempo contado, nosso amigo Clint que nos acompanhava desde a Espanha estava de férias e tinha poucos dias para essa viagem ao  Marrocos,  queríamos otimizar o tempo e explorar o máximo possivel,  passamos praticamente o dia conhecendo a cidade  e optamos não dormir  por ali,  e o tempo ainda  foi  suficiente para  desfrutar de um delicioso almoço na simpática praça principal, ali provamos nosso primeiro   cuscuz marroquino, esse  que no final da viagem descobri que foi o mais saboroso de todos.

Chaouen, como é chamanda carinhosamente, tem outra particularidade, entre seus diversos tons de azul, o verde também prevalece. Num país tão conservador onde a bebida alcoólica é um tabu, quarenta por cento da produção mundial de cannabis sai desta região, mesmo sendo ilegal o haxixe é oferecido com muita naturalidade pelas ruas da cidade e hotéis oferecem tours especializados pelas vastas plantações nas Montanhas do Rife, região esta que alimenta quase cem por cento do mercado europeu.

Na mesma esquina que o táxi nos deixou pela manhã, contratamos outro que nos levaria até nosso próximo destino, rapidamente negociamos um preço justo até Fez, e a simpatia do motorista não demonstrava que teríamos surpresas pelo caminho,  quando ele parou no topo da montanha para tirarmos foto da pequena Chaouén ao fundo, nem imaginávamos que as duas duas horas que nos separavam do hotel que o Clint havia reservado na cidade de Fez, seriam repletas de tanta emoção.

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O  motorista parecia bem contente por ter recebido seu pagamento antecipado, assim como ele sugeriu quando entramos no carro, e com seu bom espanhol, durante o trajeto contava muitas histórias, explicava coisas do caminho, perguntava sobre nós e entre uma conversa e outra  fazia chamadas pelo celular em árabe é claro,  eu acompanhava o caminho pelo gps do celular e tudo estava sob controle.  Já estávamos um pouco mais da metade do caminho, quando de repente ele parou o táxi  num posto e disse que teríamos que descer e trocar de carro. Depois de um certo desconforto e um pequeno bate boca, o senhor nos explicou que era Ramadan e que ele tinha voltar para casa para comer.

O Islamismo é a religião maioritária no Marrocos e o Ramadan é o período no qual a maioria dos muçulmanos pratica o jejum, ficam sem comer desde que o sol nasce até o pôr-do-sol, era quase fim de tarde, quer dizer o tiozinho estava na larica.

No outro ”táxi”,  além do motorista havia outro homem, neste momento eu já me imaginei sendo trocada por  camelos ou coisa pior; o motorista era bem pouco simpático, vamos dizer assim, e o acompanhante com cara de louco,  turbante,  barba até o peito e com uma malinha no colo estava sentado no banco de trás. Quando tentamos um boa tarde ninguém nos respondeu,  o Sérgio foi na frente com o motorista, o Clint no meio,  eu fui encolhida com a cara grudada no vidro e com a mão na maçaneta da porta. De repente o motorista começou a gritar no  telefone com alguém em árabe e passou o telefone para o Sergio, pela conversa se entendia que alguém do outro lado tentava em espanhol vender um tour para nós, nessa hora o motorista parou o carro e o suposto homem bomba desceu. A partir daí o motorista arriscou umas palavrinhas em espanhol, agradecemos pelo tour e ele pediu o endereço  do hotel que tínhamos reservado. Mal olhou a reserva, entrou umas ruas, parou numa esquina, apontou uma rua estreita cheia de lojas, parou o carro, o Clint tentava dizer que não era ali, ele dava uma de  não te  entendo, abriu o porta malas, pegamos nossas mochilas e ele sumiu.   Bem vindos! Agora sim chegamos no Marrocos! E só estava começando…

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Sentamos na lanchonete que havia em frente e logo descobrimos que estávamos pelo menos a dez minutos de onde tínhamos que estar, o garoto que nos atendeu chamou um táxi e disse onde ele tinha que nos deixar. A partir daí começou a segunda sequência de presepada.

Quando o taxi parou já era mais de cinco e meia da tarde, ameaçava chover e em pouco tempo estaria escuro, estávamos na entrada da Medina, lembrem-se ai não entra carro, são centenas de ruas todas iguais, estreitas, cheias de gente, lojas, enfim, o hotel estava por ai, em alguma dessas ruas e o desafio era saber onde.

Antes que eu tocasse a porta do carro já havia um tipo que abriu minha porta, perguntando que hotel íamos, quando olhei para o lado ele já estava olhando a reserva que estava com o Clint, antes que déssemos conta ele já havia pego a reserva da mão dele e saiu andando dizendo para a gente acompanhar ele. Depois de quase uma hora  andando no meia daquele monte de gente, com as mochilas, chovendo, entramos em pelo menos três hotéis diferentes, e quando descobriam que a reserva não era dali praticamente nos expulsavam,  todos os hotéis tinham o mesmo, alguma coisa estava muito errada… e de repente  o Sérgio surtou! Aos berros arrancou o papel da mão do garoto, já estávamos passando pelo mesmo lugar pela terceira vez.

Neste momento olhei para o lado e vi um posto policial, entrei com o papel na mão e policial veio até a porta, o garoto insistia que o Clint tinha que pagar ele pela “ajuda”, aos gritos  o policial falou algo para nosso guia e  acho que ele entendeu,  porque  em cinco minutos estávamos porta da surpresa que o pobre Clint havia nos preparado. Um Riad! Sabe o que isso significa?

Normalmente foram palacetes, construções históricas dentro de uma Medina e transformados em hotéis charmosos, com estilo, gerenciados por famílias que proporcionam atendimento diferenciado e exclusivo aos seus hóspedes.

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Quando nos abriram a porta principal o que víamos nos agradava muito, um salão principal tipicamente marroquino, com detalhes exóticos, cores vibrantes e mobílias cheias de detalhes, sim era ali!

Nosso amigo Clint é americano, um cara reservado, muito gentil, tinha uma imensa vontade de conhecer o Marrocos mas nunca se animou em viajar sozinho por aquelas bandas, quando comentamos que tínhamos planos de ir, se animou e nos acompanhou. Sua única restrição era que não gostaria de dormir em hostels, com quartos compartilhados, nos comentou que roncava muito e não queria incomodar outras pessoas, todos concordamos que ele escolheria as hospedagens durante os dias que estaríamos juntos e  ele estava super animado que apesar de todos os problemas para chegar até ali havíamos encontrado nosso “Riad”.

Apesar de ter feito a reserva para dois quartos só havia um disponível, com três camas. Sem problemas, estávamos muito cansados para discutir, pegamos a chave e fomos para o nosso maravilhoso quarto estilo marroquino, cheio de estilo e conforto, assim como estavam nas fotos que ele animadamente nos mostrou. Conforme íamos subindo os andares, por escadas estreitas e irregulares de madeira a qualidade ia baixando. Por fim , chegamos no último andar, no último quarto, era o nosso.

Ao abrir a porta o cheiro de mofo já saiu, as paredes pintadas de rosa davam a impressão de um bordel de quinta, a vista da janela era para uma montanha de lixo, os colchões tinham uns dois centímetros de espessura, dormir no chão talvez seria mais confortável, a porta do banheiro não fechava, um cheiro de esgoto subia do ralo como se um rato havia morrido preso ali, enfim, com a sua gentileza de sempre, Clint tirou da sua mochila um protetor auricular e me deu, para o Sérgio, foi só um boa sorte e caímos na gargalhada. Afinal ele avisou roncava muito, mas não imaginávamos que ele  era praticamente um leão rujindo , tanto que a partir daí o boa noite foi substituido pelo ” welcome to the jungle” (bem vindo a floresta).

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O “Pink Room” como foi apelidado nosso quarto rosa deixou a desejar, a noite não foi das melhores , apesar das costelas doendo devido a cama de faquir e o ruído do ronco que parecia que o prédio estava desmoronando,  sobrevivemos. O que não dava para negar era que esse último andar tinha uma vista incrível da cidade e ainda reservava uma agradável surpresa para nós.O Islamismo é a religião dominante no Marrocos, noventa e nove por cento das pessoas são muçulmanas e  praticam suas orações ao menos cinco vezes ao dia, dos minaretes das mesquitas, alto falantes ecoavam  por toda cidade e do alto escutávamos a onda de oração vinda do horizonte, uma sensação ímpar, independente da crença de cada um, isso foi para todos nós um momento para guardar no fundo da alma.

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Hora de entrar  no verdadeiro Marrocos,  na verdadeira essência marroquina, que  está dentro destas paredes da  Medina de Fés, essa é uma das maiores definições da história viva entre os países árabes, um labirinto de ruas, que se move com a  multidão que  circula diariamente  entre suas vielas, rostos de todos os lugares do mundo, os mais exóticos cheiros, um aroma medieval,  todas as cores e  sabores incomuns, vozes e sons desconhecidos e uma mescla de todas as sensações, um mergulho cultural, que por   isso tem a fama de império dos sentidos, andar pela Medina de Fés é  entrar numa história incógnita, que até chegar ali você pode até imaginar como é, mas somente quando absorver essa experiência singular vai sentir seu  verdadeiro significado.Sua arquitetura enche os olhos,  tem um caráter sagrado, um lugar que se esquivou da passagem do tempo, onde cada detalhe importa. São donos da universidade mais antiga do mundo, fundada no ano de 859 na ”Mesquita Quaraouiyine” e de muitas outras construções incrivelmente encantadoras.

Entre a dificuldade do idioma e das várias artimanhas dos marroquinos para agarrar um cliente, comprar algo é uma experiência. Se você for o primeiro  a entrar na loja pela manhã e não comprar nada, eles entendem que isso vai dar azar para o dia todo,   alguns te pegam pelo braço, insistem muito, andam atrás de você, chega a ser divertido, se quiser realmente comprar algo tem que se preparar psicologicamente para a briga do preço ou sair com a sensação que poderia ter pago bem menos. São tantas coisas interessantes que é muito difícil sair ileso.

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Dentro destes muros, também está o famoso curtume de  “Chouara Tannerie” que é o mais antigo do mundo em funcionamento,   a  partir de  peles de vacas, cabras e carneiros, estes lugares tem como oficio tratar e tingir o couro, é fácil encontra-lo pelo o odor de putrefação que exalam dos tanques. O processo é totalmente artesanal, primeiramente as peças descansam alguns dias nos tanques brancos, que  são de amoníaco natural, desenvolvido com alto teor de cal e excremento de pombos, até algumas décadas atrás o tingimento era feito  exclusivamente de coloração natural , como açafrão,  , henna, papoula, madeira de cedro entre outros, hoje em dia pela facilidade e comércio massivo os corantes industrializados tomaram conta do mercado, mas com uma tradição de mais de oito  séculos, o trabalho continua sendo feito  totalmente  à mão.   Definitivamente trabalhar neste lugar não deve ser uma profissão muito agradável.

Para observar o singular cenário, normalmente os melhores pontos de observação circundam o lugar, o acesso sempre está por dentro de uma loja ou outro estabelecimento  comercial e para sair dali sem  bolsa por exemplo,  tem que ter muito jogo de cintura.

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Como a maioria dos países árabes e de religião predominantemente muçulmana, o  Marrocos reúne hábitos específicos. É comum observar nas ruas homens de mãos dadas, o que é um símbolo de amizade e não de envolvimento amoroso, alguns até trocam beijos no rosto em público, se abraçam e andam de mãos dadas como prova dessa fraternidade. Bebida alcoólica praticamente não é consumida e o chá talvez é a bebida mais consumida,   quase todas as refeições terminam com chá de men ta e café com leite é uma bebida consumida em qualquer hora do dia. Marroquinos comem com as mãos, principalmente a direita e demonstram seu luto usando roupas brancas.

 A fama do assédio desmotiva um pouco as mulheres a viajarem sozinhas por lá, eles realmente são bem pesados,  não perdem  a chance de investida se uma mulher está sozinha, a fama é tanta que tem até um aplicativo, de brincadeira é claro,   que calcula quantos camelos pode valer  uma mulher,  eu fui bem cotada,  então meus dois acompanhantes me ameaçavam o tempo todo em me trocar pelos 64 camelos que o aplicativo deu por mim. Brincadeiras a parte, a vida das mulheres não deve ser muito fácil por lá, sempre são muito reservadas, no lugar de burcas, usam uma espécie de túnica e sempre com os cabelos cobertos por lenços, nos olham  com o mesmo fascínio que observamos sua beleza escondida e sorriem tímidas,  talvez com a mesma curiosidade que provocam na gente.

 Apesar da crescente autonomia das mulheres nestes países árabes, a vida delas é muito diferente das nossas, nunca você verá um grupo de amigas num café ou restaurante. Casamento, virgindade, independência e violência são temas bem delicados e a igualdade de gênero definitivamente não faz parte das tradições marroquinas.

 Mas sim, o Marrocos é muito aberto ao turismo e aos turistas, com  bom senso, roupas adequadas e respeito aos costumes deles, as coisas funcionam muito bem,  é um país espetacular, um universo de sensações.

Terminamos as duas tardes que estivemos ali sentados num café enorme, eu era a única mulher por ali, apesar de nunca perguntarem diretamente para mim o que eu queria e  nem responderem a mim se eu perguntava algo, confesso que não me sentia nem um pouco desconfortável, eu achava só achava bem curioso. Falávamos  da vida, observávamos  como a vida pode ser diferente em cada parte do mundo, discutíamos quais seriam nossos próximos passos e em poucos minutos decidimos pelo óbvio e inevitável. Que nossa próxima parada seria nas areias douradas do  Deserto do Saara. Quem nunca sonhou com isso? E nós estávamos ali prontinhos para as mil e uma noites.

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Stranger, danger! O quarto rosa.